Projetando futuros para Curitiba

Quando uma pessoa ou uma organização fala do futuro, elas estão, na verdade, falando do presente. Propor e discutir futuros é uma maneira de interferir no presente, seja para manter as coisas como estão, seja para transformá-las.

No artigo que escrevi com meu colega Rodrigo Gonzatto sobre ideologia do futuro, afirmamos que não existem futuros desinteressados. O futuro é uma artimanha ideológica para dar a impressão de que algo do presente é mais importante do que parece. Coloca-se algo do presente no futuro para que essa coisa pareça evitável (numa distopia) ou inevitável (numa utopia).

O futuro impele as pessoas a fazer algo a respeito no presente: ficar com medo ou se empolgar, aceitar ou rejeitar, consumir ou refletir. Quando o futuro é proposto ou discutido em público, estimula também ações coletivas. Porque ele tem impacto no presente, dizemos que o futuro está no presente e porque trata da coletividade, dizemos que o futuro é uma ideologia.

Recentemente, tivemos a oportunidade de experimentar com nossos estudantes de Design Digital da PUCPR como seria desenvolver ficções projetuais com tal perspectiva.

Em vista das eleições municipais de 2016, escolhemos o tema Futuros de Curitiba:

O nome do tema é Futuros de Curitiba no plural para demonstrar que não existe um único futuro para Curitiba (apocalíptico ou paradisíaco, utópico ou distópico) mas sim diversos futuros espalhados pela cidade. O futuro que virará realidade será uma síntese desses diferentes futuros, dependendo do esforço e poder que as pessoas terão para realizá-lo. Em 2016, os cidadãos de Curitiba farão um grande esforço para eleger seu prefeito e vereadores, que poderão priorizar certos futuros em detrimento de outros durante os próximos 4 anos. Tanto os demais cidadãos quanto os políticos estão interessados em conhecer as visões de futuro que os jovens tem sobre Curitiba. A proposta desse tema é reunir e colocar a público as diferentes visões de futuro dos jovens de Curitiba, não só os estudantes da PUCPR, mas também e principalmente daqueles que não tem uma voz ativa nesse tipo de debate ainda.

Começamos o ano organizado um debate entre dois candidatos a vereador em Curitiba: Tulio Filho (designer) e Jonny Stica (arquiteto). Um resumo do debate para quem não pode participar foi publicado no Medium do projeto Futuros de Curitiba.

Debate2

Em seguida, convidamos algumas pessoas que trabalhavam na Prefeitura de Curitiba para participar de oficinas de co-criação com nossos estudantes. Primeiro tivemos a participação de Alvaro Borba, responsável pelo famoso perfil da Prefs de Curitiba no Facebook. Com ele, cocriamos serviços públicos mais inteligentes. Depois, tivemos Goura Nataraja da Secretaria de Trânsito, que também era candidato a vereador (e que depois ajudei a eleger). Com ele, tivemos uma oficina sobre estratégias para mudança de comportamento no trânsito. Tudo que foi produzido nestas oficinas foi publicado no Medium com o objetivo de enfatizar o caráter público do projeto.

Nesse meio tempo, concluí uma pesquisa de campo sobre grafittis futurísticos em Curitiba. Meu objetivo era coletar evidências de que existem futuros espalhados pela cidade. A diversidade de visões expressas no grafitti foi consistente com a diversidade de locais onde eles apareceram pela cidade. Porém, dois temas foram recorrentes: sustentabilidade e cor de pele diferentes.

Curitiba realidade aumentada

Os futuros coletados foram trazidos para a sala de aula e discutidos com nossos estudantes. Explicamos que os grafittis eram alternativas aos projetos de futuro da cidade elaborados pelo instituto de planejamento da cidade, o IPPUC. Embora não tivessem a mesma abrangência que o plano diretor, os grafittis propunham maneiras diferentes do plano oficial para os cidadãos interagirem entre si. Chamamos isso de contra-projeto.

Propusemos aos estudantes, então, elaborar um contra-projeto de ficção projetual na disciplina Design de Interação. Pode parecer estranho, a princípio, colocar a cidade como objeto de uma disciplina que se ocupa primariamente com o design de aplicativos, websites ou jogos. Porém, desde que lemos a tese de Caio Vassão, compreendemos que design de interação é a nova fronteira para o urbanismo. Os fluxos da cidade estão cada vez mais dependentes da tecnologia da informação e, se não forem projetados à partir de uma visão holística de cidade, podem acabar isolando mais do que conectando as pessoas.

Isolated city sarah kirk

Nas primeiras aulas, apresentamos o design de interação ecológico que o Caio propunha. O ponto principal é que o projeto não se centra num usuário ou num grupo de usuários, mas sim numa rede complexa que envolve diversos tipos de pessoas e tecnologias. O que parece teoria é, na verdade, um conceito muito prático adotado pelo design de serviços. Em nossa visão, a cidade é uma rede de serviços.

Para não nos perder na visão macro da cidade, adotamos a proposta do Caio de adotar o corpo como fulcro de projeto. Num post anterior, eu explico a proposta:

O corpo não é apenas a referência e a origem das informações, mas também é quem coloca as informações na tecnologia digital. O objetivo da interação é afetar o próprio corpo (guardando informações para serem utilizadas depois, por exemplo) ou afetar outros corpos (informar uma outra pessoa). Não basta que a informação seja transferida para a tecnologia digital, é preciso que ela seja apropriada por um corpo para que se realize a interação.

Isso foi realizado através da prática de criação de cenários em vídeo, prototipação, bodystorming e teatro imagem. Todas as nossas aulas deram a oportunidade dos estudantes exercitarem seus corpos de maneira ativa, não por uma questão de saúde, mas de projeto. Em nossa visão pedagógica, projetar com o corpo inteiro é fundamental para compreender os nuances da interação, em especial, quando tratamos de interações que acontecem no contexto de uma cidade.

Apesar de ter a cidade como contexto, não perdemos de vista os pequenos objetos que fazem parte das interações do dia-a-dia. Ao invés de trabalhar apenas a parte do objeto atribuída pela divisão do trabalho aos profissionais de design (a interface), propusemos trabalhar com o objeto em sua totalidade. Num primeiro momento, pedimos que os estudantes conversassem com objetos para compreender suas potencialidades. Depois, pedimos que conversassem com outras pessoas sobre os objetos.

Na foto abaixo, há uma série de objetos utilizados em Curitiba nos anos 1970. Cada estudante teve a tarefa de trazer um desses objetos junto com uma entrevista em vídeo com seus respectivos usuários. À partir desses objetos do dia-a-dia, tecemos relações (fios) e construímos, coletivamente, uma visão de como era a cidade de Curitiba nos anos 1970.

Historia objetos curitibanos

O motivo de estudar Curitiba dos anos 1970 é a abundância de registros históricos existentes para compreendê-la. Se a gente tivesse pedido aos nossos estudantes para estudar a Curitiba dos anos 2010, haveriam menos fontes e as explicações seriam confusas. Isso porque o passado da cidade já foi amplamente registrado, discutido e organizado, enquanto que o presente ainda está sob disputa.

À partir dessa imersão em Curitiba dos anos 1970, os estudantes foram convidados a transformar os objetos estudados em ficções projetuais. Estes objetos deveriam ser desenvolvidos seguindo o estilo futrô, que traz uma funcionalidade futurística para um passado divergente. A proposta era construir uma ficção projetual que começasse nos anos 1970 e terminasse nos anos 2010.

Os formatos "anúncio de revista" e "capa de jornal" foram excelentes para começar o processo. Abaixo é possível ver o anúncio de um serviço de Photoshop por correio e uma notícia sobre um monóculo que tocava vídeos.

Objetos futro curitiba anos1970

Depois de colar todos os anúncios e jornais no corredor da Universidade, pedimos que os estudantes acrescentassem post-its com potenciais conflitos criados pela antecipação das tecnologias. Os estudantes podiam colar post-its tanto nos seus projetos quanto nos projetos dos colegas.

Painel futro

Para nós, estes conflitos eram muito importantes pois ancoravam produto ao contexto estudado (Curitiba dos anos 1970). Nosso objetivo com o futrô era ajudar nossos estudantes a compreender que a tecnologia está implicada em conflitos que se acumulam e se resolvem ao longo da história.

O próximo passo, então, foi criar diversas histórias conflituosas de pessoas e tecnologias, atravessando os anos 1980, 1990, 2000 e a atual década de 2010. Utilizamos bonecos e peças de Lego para criar a história, tal como no faz-de-conta infantil.

Estudantes contando historias

O momento lúdico da criação foi succedido por uma análise do conflito, na linha do Teatro do Oprimido. O objetivo era chegar às raízes históricas do conflito. O conceito de opressão é muito útil para isso, pois ajuda a identificar como o conflito surge no cotidiano. Utilizando o teatro imagem, experimentamos diversas maneiras para escapar à opressão, cada qual devidamente fotografada e discutida pela turma.

Na imagem abaixo vemos o fluxograma de reação de uma jovem negra tentando se livrar da opressão que a induz a modificar o tom de sua pele no serviço de Photoshop manual.

Fluxograma opressao pintafoto

O teatro imagem deixou claro que a transformação social é complexa, que existem diversas perspectivas num conflito e nenhuma delas pode ser deixada de lado, do contrário, o conflito fica ainda maior.

Após refletir sobre as imagens de opressão improvisadas em sala de aula, pedimos que criassem fotomontagens realísticas do contexto de uso dos produtos fictícios. O objetivo era desenvolver uma linguagem visual para expressar o conflito.

Na foto abaixo vemos a foto de um usuário do Spotify nos anos 1970, com uma coleção gigantesca de fitas cassete. Na ficção projetual, a fita se tornou tão mais barata que atingiu regiões do Brasil que nem o rádio chegava.

Spotify anos1970

Diversos conflitos criados pela antecipação do Spotify foram imaginados:

O formato que escolhemos para finalizar a ficção projetual foi o documentário falso, também conhecido como mockumentary. A proposta era mostrar como o desvio tecnológico dos anos 1970 tinha impactado os dias de hoje.

Os filmes produzidos foram publicados na página do projeto Futuros de Curitiba. Com o objetivo de levar a discussão sobre os futuros da cidade para um público mais amplo, procuramos a Prefeitura de Curitiba e recebemos o apoio para divulgar um dos filmes na página do Facebook da cidade.

O documentário fictício SubCuritiba conta a história da divisão da cidade em duas: a cidade verde, ecológica e inovadora da superfície e a cidade escura, poluída e trabalhadora do subterrâneo. Essa divisão ocorreu em conjunto com o desenvolvimento acelerado da infraestrutura viária subterrânea. O filme obteve 11 mil visualizações e dezenas de comentários no Facebook.

Os principais comentários expressam a identificação afetiva das pessoas com a cidade. Poucos mencionaram a possível analogia entre a ficção e os fatos contemporâneos que sugerem uma tendência crescente de desenvolvimento desigual de infraestrutura pública na cidade.

Por exemplo, a nova gestão da Prefeitura de Curitiba anunciou há alguns dias o Vale do Pinhão, um programa de investimentos para estimular a criação de startups na cidade. Este programa pode ser considerado uma ficção projetual, uma vez que Curitiba não dispõe de nenhuma das condições que fizeram o Vale do Silício possível, a começar pela inexistência de vales no planalto.

O traçado divulgado pela Prefeitura (em vermelho vinho no mapa abaixo) exclui ostensivamente a Vila das Torres (área em vermelho), região próxima ao centro onde moram pessoas de menor poder aquisitivo. Se incluída, a região poderia ajudar na conexão da PUCPR com a UFPR, gerando empregos e conhecimento onde mais se precisa.

Vale do pinhao

Esse problema urbano é similar ao da neutralidade da rede. Em países da África, enquanto os ricos podem acessar qualquer website, os pobres ficam restritos ao Facebook e Wikipedia. Na tentativa de burlar essa restrição, os usuários angolanos escondem links para filmes e músicas piratas em artigos da Wikipedia em português. Os moderadores portugueses e brasileiros que desconhecem esse contexto de acesso se irritam por ter que apagar os links criados pelos angolanos. O conflito ocorre porque a infraestrutura separa as pessoas de acordo com seu poder aquisitivo, criando uma espécie de gueto digital.

A conclusão do projeto Futuros de Curitiba é que existem muitos futuros espalhados pela cidade e que há uma disputa entre diversos atores para afirmar qual futuro está valendo no presente. Suas ideologias aparecem não só no discurso, mas também nas imagens, objetos e interações que aparecem no futuro. O objetivo é fazer uma conexão afetiva com o público para sugerir de maneira indireta uma ação ou inação no presente.

O projeto Futuros de Curitiba também demonstrou que o design de interação e, em especial, a ficção projetual podem ser usados tanto para profetizar quanto para discutir futuros. Apresentados dessa maneira, servem como abordagem prática para conscientizar estudantes de design de seu papel político na sociedade.

Com a prática de desenvolvimento de projetos livres, nós conseguimos trabalhar o conteúdo político sem cair no proselitismo, partidarismo ou demagogia. O processo e o resultado estão agora finalmente documentados para averiguação pública. Que venham as críticas!

Fred van Amstel ([email protected]), 24.01.2017

Veja os coment?rios neste endere?o:
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