Achismo, probabilismo e possibilismo

A experiência do usuário é uma performance emergente e tentar projetá-la através de fluxos de informação e estruturas de interação envolve muitas incertezas. Quando culturas humanas lidam com incertezas, elas desenvolvem crenças. Eu identifico três crenças que existem na prática de design contemporânea: achismo, probabilismo e possibilismo.

O achismo consiste em uma determinação de projeto baseada na experiência prévia, intuição ou acaso, que não considera ou avalia diversas possibilidades. O achista simplesmente acha que aquilo deve ser feito assim. Não há dados relevantes sobre o que já aconteceu no passado ou, se existem esses dados, eles são ignorados. O achismo frequentemente se baseia em conhecimento acumulado pelo achista na forma de heurísticas, sejam elas explícitas ou tácitas.

O achismo é uma crença cultivada pelo pensamento projetual intuitivo. O projeto derivado desse pensamento possui grande coerência interna, pois todos os elementos são definidos de acordo com uma visão, geralmente, a visão de uma única pessoa que se considera capaz de tomar decisões em condições de incerteza. O problema do achismo é que esta visão pode estar equivocada e o projeto falhar miseravelmente.

Achismos

Em um projeto, o achismo costuma durar até começarem a ser coletados dados sobre o impacto das determinações de projetos anteriores. Com dados, as determinações podem ser julgadas objetivamente, inclusive, por outras pessoas além do achista visionário. Logo surge um dilema: continuar confiando na visão de uma pessoa ou confiar mais nos dados coletados? A resposta para essa questão leva às duas outras crenças: probabilismo e possibilismo.

A crença no probabilismo consiste em acreditar que um padrão atual tende a se reproduzir no futuro. Para identificar esse padrão, são utilizadas métricas e para identificar como ele se reproduzirá no futuro, são utilizados cálculos de probabilidade. O objetivo é prever várias possibilidades e identificar as mais prováveis para tornar o projeto mais adequado a elas.

Mobile traffic goal flow

O probabilismo tem sido disseminado, em partes, por ferramentas de rastreamento do comportamento do usuário, como o Google Analytics. Uma funcionalidade chave do Google Analytics é o fluxo de conversão, que identifica os passos seguidos pelos usuários que tentaram atingir uma meta, por exemplo, comprar um item numa loja virtual. Atingir essa meta significa converter um usuário em cliente. O fluxo de conversão mostra quantos por cento dos usuários seguiram ao próximo passo na direção da meta e quantos se desviaram dessa meta.

Uma outra ferramenta muito utilizada em conjunto com o fluxo de conversão é o Teste A/B ou multivariado. Para realizar o teste A/B é necessário criar pelo menos uma versão alternativa (B) de uma interface (A) e decidir quantos por cento dos usuários verão essa nova versão. Normalmente a versão B é mostrada para uma porcentagem bem pequena do público, porém, se ela contribuir para um desempenho melhor na taxa de conversão global, a versão B acaba substituindo a versão A para todos os usuários. Um aplicativo ou uma loja virtual podem evoluir gradativamente aplicando esta técnica sucessivamente na mesma interface ou em várias outras.

O projeto probabilístico evolui na direção da média estatística do comportamento dos usuários, o que implica menos usuários tratados de maneira adequada para seu contexto de uso. Ao invés de atender bem um número menor de usuários, tentar atender o máximo de usuários com o mínimo de design acaba resultando em um atendimento pior para todos. São raras as situações em que a população de usuários seja tão homogênea a ponto de poder afirmar que um indivíduo represente o usuário médio e seja bem atendido como tal. O caso mais comum é que haja grande variação entre os usuários e cada um tenha que ser atendido diferentemente.

O projeto centrado no usuário médio resulta em uma interface medíocre, cheia de funcionalidades que não se relacionam bem, mas que estão ali porque passaram em um teste A/B ou foram copiadas de benchmarks com concorrentes. Para os probabilistas, isso não é necessariamente um problema se a taxa de conversão for considerada satisfatória. O probabilismo efetivamente reduz a avaliação do projeto ao que é mensurável, criando um efeito de encurtamento da visão projetual. Qualidades importantes para a experiência do usuário são ignoradas simplesmente porque não há métricas para elas. Quem acredita no probabilismo quer ver tudo dentro de sistemas previsíveis, ou seja, essa crença está vinculada ao pensamento projetual sistemático.

É preciso reconhecer que o probabilismo oferece, a curto prazo, menos riscos do que o achismo. Porém, a médio e longo prazo, ele oferece mais riscos do que o achismo. Uma vez que ele apresenta resultados a curto prazo, o investimento de capital no projeto tende a ser maior. Porém, quanto maior o investimento, maior é a cobrança por resultados nas métricas, o que reforça ainda mais o foco em probabilidade. O projeto só faz o óbvio e se torna incapaz de gerar inovações qualitativas. O risco de ser desbancado por uma inovação qualitativa da concorrência é grande, principalmente, porque as pessoas envolvidas no projeto já não conseguem nem mesmo perceber o que é qualidade. Só veem quantidade.

SpreadsheetPic

Chegamos, então, à última crença. O possibilismo é uma maneira de evitar o encurtamento da visão projetual através da interpretação dos dados e tentativas informadas. Assim com o probabilismo, o possibilismo se preocupa em coletar dados, porém, as decisões são tomadas por intermédio de um processo contínuo de interpretação que inclui diversas perspectivas e teorias. Todas as possibilidades levantadas são consideradas, mesmo que algumas sejam consideradas mais prováveis que outras.

Esse espaço de possibilidades é o que chamamos informalmente de "caixa". Pensar fora da caixa é pensar no impossível, pensar no improvável, pensar no impensável. Porém, pensar fora da caixa sozinho pode provocar um descolamento da realidade. Para ver o todo, é preciso incluir pessoas diferentes no projeto e gerar visões compartilhadas. Em conjunto, as pessoas podem explorar o espaço de possibilidades muito mais rápido e amplamente do que sozinhas. Cada tentativa informada deixa mais claro o que é possível e, às vezes, transforma algo que era considerado impossível em possível.

Perspectivas possibilidades

Os possibilistas acreditam que conseguem transformar o impossível em possível não só na imaginação, mas também na realidade. Basta juntar um grupo de pessoas com coragem, integração e competência técnica que tudo se torna possível. As possibilidades que existem no mundo são sempre maiores do que conseguimos pensar, porém, a cada vez que pensamos além, o possível se expande, nem que seja um pouquinho. Chamo isso de o novo possível.

Expandir o possível significa também conhecer aquilo que ninguém conhece. Na Gestão do Conhecimento, existe um diagrama sobre tipos de desconhecimentos conhecidos e conhecimentos desconhecidos chamado Matriz de Rumsfeld.

O tipo de conhecimento que o possibilismo almeja é o desconhecido desconhecido, ou seja, aquilo que ninguém sabe e nem imagina que não sabe. Quando esse desconhecido se torna conhecido, ele pode provocar uma disrupção na produção de conhecimento. Nassim Taleb, um matemático de origem libanês, chamou esse fenômeno de Cisne Negro. Ninguém na Europa acreditava que existissem cisnes negros até que uma expedição pela Austrália no século XVIII descobriu a existência dos mesmos. Essa descoberta improvável provocou uma revolução na taxonomia animal e abriu caminho para a formulação da Teoria da Evolução de Darwin.

Reconstruction of MC1R evolution over an independent molecular phylogeny of swans and W640

O Cisne Negro é uma metáfora para eventos de baixa probabilidade que são subestimados, ignorados ou desconhecidos e, que, ao emergirem, acabam causando impactos gigantescos porque ninguém se preparou para sua existência. Um exemplo de Cisne Negro é o lançamento do primeiro iPod pela Apple. O volume de vendas da Apple já estava crescendo desde que Steve Jobs voltara ao comando da companhia. Porém, com o lançamento do iPod, o volume tomou proporções gigantescas e continua gigante até os dias de hoje. Era improvável que o iPod seria melhor do que os outros tocadores de música MP3 da época, pois esses outros tocadores tinham maior capacidade de armazenamento, suas baterias duravam mais e tinham funcionalidade de equalização.

O que o iPod tinha de diferente era sua relação com os usuários. A base de consumidores da Apple, juntamente com aquele objeto sedutor, com sua interface inovadora e com o novo sistema de distribuição de música, produziu qualidades da experiência do usuário marcantes que influenciaram uma geração. Para começar, o objeto era pequeno o suficiente para caber por inteiro dentro da sua mão ou do bolso sem nenhum desconforto. Numa época em que os telefones celulares precisavam ser guardados em bolsas ou presos a cintos, isso fazia muita diferença.

O iPod foi um dos primeiros objetos digitais realmente projetados para o uso móvel. Considerando que, ao se mover, o usuário frequentemente está com uma mão ocupada, a Apple desenvolveu um dispositivo de input novo chamado clickwheel, uma rodinha que rolava as opções de um menu e permitia controle eficiente com apenas uma mão. Até hoje eu ainda sinto falta desse dispositivo de input, principalmente, pela capacidade de ir e voltar rapidamente. Entretanto, a qualidade mais distintiva do iPod foi a integração com o iTunes, que permitia não só a aquisição de músicas por preços relativamente baixos, mas também permitia organizar playlists baseadas em gosto. Os concorrentes ofereciam tocadores de música. A Apple oferecia uma experiência completa para descobrir, comprar, armazenar, ouvir, avaliar e organizar músicas.

First gen ipod 01

Muita gente acredita que o iPod era fruto do achismo de Steve Jobs. Ele achou que ia dar certo e deu. Isso não é verdade. Jobs e sua equipe já haviam desenvolvido produtos similares, como o iMac e iBook e haviam coletado muitos dados sobre o comportamento dos usuários. Seria um caso de probabilismo? Não, pois apesar de contar com dados, Jobs e sua equipe preferiam criar algo nada óbvio (um dispositivo com um design todo diferente) ao invés de usar os padrões existentes. Por isso, considero que o iPod foi uma inovação qualitativa. Ele forçou a competição a oferecer também experiências completas e, na verdade, todo o mercado de objetos digitais acabou sendo afetado por esse projeto. Essa mudança culminou com o reconhecimento da Apple de que se tornou, ao longo dos anos, uma empresa de serviços e não só uma empresa de tecnologia.

O possibilismo oferece mais riscos do que o probabilismo, porém, os riscos são menores do que o achismo porque há embasamento em interpretações e dados. Por outro lado, a possibilidade de inovar qualitativamente é muito maior, porque não se está preso a qualidades existentes. A abordagem para o tratamento da incerteza no possibilismo é criar novas possibilidades ao invés de usar as possibilidades existentes. O conhecimento atual é utilizado para especular novos conhecimentos de maneira objetiva, em conjunto com várias pessoas, considerando sempre várias possibilidades. Mesmo que a meta pré-definida não seja atingida, existe um resultado garantido de tentar fazer o novo: a aprendizagem. O conhecimento criado (e não adquirido) pode ter até maior valor do que a meta pré-definida pelo projeto. Jobs e sua equipe erraram e aprenderam muito com outros produtos antes de acertar com o iPod. Ninguém mais tinha a experiência que a Apple tinha e Jobs soube aproveitá-la muito bem no projeto do iPod.

O possibilismo é, portanto, uma crença cultivada pelo pensamento projetual expansivo, que é caracterizado por incluir múltiplas perspectivas sobre uma mesma questão. Se o probabilismo tende à inovação quantitativa, o possibilismo abre espaço para a inovação qualitativa. Em projetos orientados às qualidades da experiência do usuário, essa é na minha opinião, a crença mais interessante a ser cultivada. Isso não significa que as outras crenças devem ser suprimidas; isso significa que o designer de experiências deve defender a crença no possibilismo frente ao probabilismo e o achismo defendido por outros especialistas.

Fred van Amstel ([email protected]), 09.10.2019

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