Projetos de transição

Como acabar com a fome no mundo? Como eliminar as emissões de carbono das sociedades industrializadas? Como evitar a discriminação com base em gênero, raça e sexualidade? 

As respostas para esses problemas capciosos são diversas. Algumas pessoas acreditam que não é possível resolver tais problemas e que temos que aprender a conviver com eles, pois eles seriam naturais ou inerentes aos seres humanos. Já outras acreditam que é preciso uma revolução, uma transformação completa da sociedade, para que o problema seja resolvido.

Existe uma crença cada vez mais forte dentro do design sustentável de que a solução de problemas capciosos só se tornará possível gradualmente, através de diversos projetos. Cada projeto abordaria um aspecto do problema, primeiramente os mais imediatos e simples de resolver. Uma vez resolvidos, os aspectos mais distantes do problema se tornarão mais possíveis de resolver, pois a condição que deu a origem ao problema já foi modificada.

Esse tipo de resposta a problemas capciosos é chamado de projeto de transição. Como exemplo, podemos citar os projetos desenvolvidos pelo movimento de agricultura urbana. Todos que estão envolvidos com este movimento sabem que a agricultura urbana não tem condições atualmente para substituir a agricultura rural devido às condições desfavoráveis ao cultivo em larga escala no ambiente urbano. Porém, a agricultura urbana possui outros resultados que fazem valer à pena o esforço.

Fazenda urbana em curitiba 7

A agricultura urbana conscientiza os citadinos das condições de produção de seus alimentos, além de mostrar a possibilidade dessas condições serem mais sustentáveis e humanizadas. Muitos citadinos não entendem porque deveria existir vegetais orgânicos, porém, ao morar ao lado de uma horta urbana, é possível imaginar o impacto que o despejo de pesticidas e outras substâncias tóxicas teria sobre o ambiente em que vive. A aproximação espacial entre produção e consumo aumenta a consciência crítica sobre relações ecológicas.

Os defensores da agricultura urbana, diferentemente dos defensores radicais da agricultura orgânica, não acreditam que devemos acabar com os agrotóxicos da noite pro dia, através de uma nova Lei. A agricultura urbana propõe que antes disso é preciso primeiro começar o trabalho de conscientização, construindo pequenas hortas urbanas dentro das cidades, em telhados de prédios, por exemplo, de maneira que as pessoas comecem a se reconectar com a produção de alimentos. Muitas vezes as crianças nem sabem que a maçã que ela come todo dia cresce em uma árvore. Algumas até pensam que ela foi produzida em uma fábrica, que nem um brinquedo.

Tem gente nesse movimento que acha é possível você alimentar toda uma cidade apenas plantando hortas orgânicas em cima de prédios, hortas suspensas em paredões e janelas, em praças e terrenos baldios. Eu não acredito nisso, porém, acredito que a agricultura urbana pode educar quem mora na cidade sobre alternativas à produção de alimentos baseada em agrotóxicos, como a agricultura orgânica, a agroecologia, a permacultura e outras propostas alternativas.

Além de promover mudanças nos processos de produção, projetos de transição podem e precisam promover mudanças culturais, comportamentais e políticas. Um exemplo bacana aqui em Curitiba é o Terraço Verde, um projeto com várias iniciativas educativas, empreendedoras e culturais que giram em torno de um espaço no topo de um prédio que foi transformado em uma horta urbana. A partir do Terraço Verde (e outras iniciativas) surgiu o Propulsão Local, um movimento de apoio coletivo para empreendimentos locais que se preocupam com impacto social e ambiental. O projeto de transição tem essa característica de abrir espaço para o surgimento de diversos outros projetos derivados que vão atacar outros aspectos do problema capcioso. 

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O Terraço Verde, assim como outros projetos de transição, podem ser considerados desdobramentos de um movimento mais antigo chamado  Cidades em Transição ou Transition Towns. O movimento começou no Reino Unido com pessoas que se organizaram em grupos locais com o intuito de começar na sua vizinhança a transição global para uma sociedade mais sustentável.

Eles partiram da premissa de que, quando os recursos essenciais começarem a se esgotar, a resiliência da comunidade permitirá que essa vizinhança sobreviva a qualquer tipo de apocalipse. O pensamento apocalíptico está presente como em diversos outros movimentos que buscam a sustentabilidade, porém, mas ao invés de fundar ecovilas e se distanciar do urbano, o Cidades em Transição tenta transformar o bairro em um intermediário entre uma ecovila e uma pequena cidade. A proposta é iniciar uma transição gradual para uma cidade mais integrada com o rural.

Transition towns

O movimento Cidades em Transição inspirou diversos projetos de transição ao redor do mundo e até mesmo no Brasil. Porém, quero destacar o impacto que teve sobre o pensamento projetual. Um grupo de pesquisadores, professores e estudantes da Carnegie Mellon University resolveu em 2014 repensar todo o seu currículo de pesquisa em torno do conceito de transição. A universidade, que é conhecida como uma das pioneiras na oferta de cursos de pós-graduação em design de interação,  já havia se consolidado também como referência em design de serviços e design para inovação social.

Cmu transition design

Este grupo entendeu que o conceito de transição era o próximo passo para a pesquisa e prática de design. Criaram então o Design Transicional. A premissa básica dessa abordagem é que a sustentabilidade global da sociedade humana não vai ser alcançada da noite para o dia, mesmo que haja um cataclisma ambiental, uma disrupção tecnológica, ou uma crise sanitária como o COVID-19. 

Design Transicional visa a longo prazo aproximar os sistemas sociotécnicos dos sistemas naturais, de modo que suas relações sejam benéficas para ambos os lados. No início dos programas de pós-graduação em design na Carnegie Mellon, acreditava-se que design implicava necessariamente um distanciamento da natureza. Essa noção foi disseminada para o mundo todo por um antigo professor desta universidade, Herbert Simon, através do clássico As Ciências do Artificial.

Atualmente, a escola de design da Carnegie Mellon não separa o artificial do natural de maneira tão radical. O artificial é visto como uma natureza também onde vivem não só os humanos mas o diversos seres vivos que interagem conosco em ecossistemas rurais e urbanos. Os teóricos chamam isso de segunda natureza.

A proposta do Design Transicional é que a segunda natureza (produzida pelo ser humano) se torne gradualmente mais harmônica em relação com a primeira natureza. Ao invés de buscar o retorno (provavelmente impossível) à primeira natureza, o Design Transicional busca reorientar o desenvolvimento da segunda natureza para que ela contribua também para a evolução da primeira natureza. Assim, os ciclos naturais e artificiais poderiam se tornar um só.

Essa proposta não é uma novidade no âmbito da ecologia e da sustentabilidade. A permacultura e a agroecologia já propunham isso há mais tempo do que o design. Porém, o design acrescenta a possibilidade de desenvolver propostas em escalas maiores do que sítios e ecovilas, incluindo também o espaço urbano. O Design Transicional é uma proposta recente e já teve seus desdobramentos, como o Design Prospectivo que estamos desenvolvendo aqui na UTFPR. Um dos seus diferenciais é que ele não foca apenas na qualidade da sustentabilidade, mas inclui também outras transições desejáveis na sociedade atual, em particular, a brasileira.

Nota de agradecimento: esse texto foi materializado a partir da transcrição de uma aula realizada por Bianca Lopes Lang.

Série

Este texto faz parte de uma série sobre Design Prospectivo. Veja os demais:

  1. Projetos de transição
  2. Problemas capciosos requerem soluções éticas e graduais
  3. Prospectando um Design Prospectivo
  4. Rumo à Quarta Ordem de Design
  5. Prospectando qualidades relacionais

Fred van Amstel ([email protected]), 16.09.2020

Veja os coment?rios neste endere?o:
http://www.usabilidoido.com.br/projetos_de_transicao.html