Ferramentas e signos na interação humana

Signos e ferramentas são fundamentais para mediar a interação humana. Existem diversas teorias de como acontece essa mediação. A mais conhecida no design é a semiótica, porém eu tenho preferido me dedicar à Teoria Histórico-Cultural da Atividade, mais conhecida como Teoria da Atividade. Esse texto faz uma breve introdução aos fundamentos dessa teoria.

A Teoria da Atividade surgiu na União Soviética do início do século XX, após a revolução que transformou a Rússia no modelo de sociedade socialista. O modelo se baseava em uma utopia que colocava os trabalhados no centro do poder e, portanto, existia a necessidade de preparar e educar os trabalhadores para exercer este poder. Até então, somente as crianças da nobreza tinham acesso a educação.

Assim, a partir da revolução bolchevique iniciou-se a discussão sobre a educação em massa da sociedade socialista e sobre quais os referenciais esta educação deveria ser construída. Inicialmente, os educadores buscaram na psicologia comportamental de Ivan Pavlov, já conhecida no mundo todo, uma referência materialista para a educação.

A teoria de Pavlov foi elaborada no final do século XIX. A principal implicação para a educação é que seres humanos poderiam aprender da mesma maneira como os animais, através do condicionamento de reflexos. Os estudantes seriam treinados a repetir uma resposta até se tornarem condicionados.

Pavlov caes

O famoso experimento de Pavlov consistia em tocar uma campainha toda vez que um cachorro fosse alimentado. Com o passar do tempo, o cachorro  associava a campainha à hora de comer. A comida deixava de ser servida e mesmo assim a campainha era tocada. O cachorro respondia da mesma maneira como se houvesse comida na frente dele. Além de mensurar a salivação do  cachorro, para ter certeza de que o reflexo estava condicionado, havia um buraco aberto no estômago para medir a quantidade de suco gástrico.

O reflexo condicionado explicava convincentemente como cachorros e outros mamíferos podiam ser adestrados através da repetição de certas ações. Porém, havia a dúvida se era possível fazer o mesmo com seres humanos.

Inspirados nessa possibilidade, pesquisadores e educadores começaram a realizar experimentos de condicionamento na educação, utilizando a lógica da recompensa e da punição. Se a criança acertasse a pergunta do professor, ganhava um estímulo positivo, se errasse, recebia um estímulo negativo. O estímulo negativo variava de violência verbal até violência física.

Os resultados desse experimento sugeria que o método funcionava para decorar informações, porém, ao custo de transtornos psicológicos diversos. Tais experimentos acabaram sendo considerados anti-éticos e foram banidos em diversos países. Houve um grande esforço para apagar esse trecho sombrio da história humana, por isso eles não são tão conhecidos hoje em dia. Mesmo assim, é possível notar a influência do behaviorismo sobre a educação contemporânea, em níveis de violência mais sutis do que outrora.

Estimulo correcao6

O behaviorismo não era, portanto, compatível com os ideias marxistas que enfatizavam o poder, a agência e a capacidade de mudar o destino do trabalhador. Condicionar-se para adaptar-se à sociedade não era coerente. Desta forma, existia a necessidade de uma nova teoria que levasse em conta tanto a história construída pelo indivíduo quanto a cultura construída coletivamente.

Foi nesse contexto que surgiu a Teoria da Atividade. Lev Vygostky deu o pontapé inicial com a abertura da psicologia histórico-cultural. Primeiramente, ele criticou as escolas que buscavam o reflexo condicionado, pois estas iriam gerar uma classe de trabalhadores alienados que não seriam críticos o suficiente para evitar a volta da burguesia ao poder. Como alternativa, ele postulou que a consciência humana é construída historicamente e culturalmente e, portanto, não seria possível determiná-la por estímulos pontuais.

Nessa psicologia, sempre que um indivíduo recebe um estímulo externo, ao invés dele reagir imediatamente como proposto por Pavlov, o indivíduo  relaciona o estímulo a estímulos prévios, o que Vygotsky chamou de signo. O signo transforma o estímulo externo em um estímulo interno que pode ser relacionado com experiências passadas. É a partir desse estímulo interno que o indivíduo formula a sua resposta, podendo, assim aprender a reagir diferentemente a cada novo estímulo.

Mediacao simbolica vygotsky2

Desta maneira, o indivíduo transforma o estímulo à partir de sua história de vida, reagindo de acordo com a sua interpretação particular da cultura compartilhada. O signo desconstrói a determinação mecânica do comportamento através do ambiente e introduz uma dialética entre indivíduo e coletividade. Além disso, permite explicar a aprendizagem como um processo de longa duração.

A criança aprende a ser humano através de ações simbólicas, ou seja, orientadas pelo significado social e o sentido pessoal da ação realizada. Desde que nascem, as crianças já têm interações com adultos que ajudam a construir signos. O bebê faz os primeiros movimentos do corpo sem uma intenção específica, mas ao realizar um movimento que os pais reconhecem como sendo um gesto, algo acontece. Os pais trazem o brinquedo que a criança apontou e a criança aprende a apontar, mesmo que não tivesse tido a intenção de apontar. Esse signo é, portanto, construído culturalmente ao longo da história da criança e da cultura humana que desenvolveu o gesto de apontar com o dedo indicador. Depois de interiorizar este signo, a criança passa a utilizá-lo para outros fins, tal como atrair comida. E quando ela se torna adulta, transmite o gesto para outras crianças.

Existem portanto, dois processos associados ao aprendizado na psicologica histórico-cultural: a internalização e a externalização. A internalização acontece quando uma ferramenta externa se transforma em um signo interno. Já a externalização é o inverso: quando um signo é expresso de um indivíduo para outro indivíduo ou para um coletivo.

Internalizacao vygotsky2

O exemplo clássico de internalização de Vygotsky é o aprender a contar através da manipulação dos dedos. Contar é uma operação abstrata que, uma vez dominada, se torna quase automática. Pedagogos costumam mostrar como a criança pode usar seus próprios dedos como uma ferramenta para contar. Com o tempo, a criança internaliza a ferramenta e não precisa mais dos dedos. A ferramenta se transforma em um signo abstrato, a operação matemática, que pode ser utilizada para contar outras coisas além de dedos, tais como frutas e brinquedos.

A externalização é o processo inverso, ou seja, partindo de um signo, o indivíduo realiza uma operação mental e cria uma ferramenta que pode ajudar a mudar o seu próprio comportamento. Essa ferramenta pode também ser utilizada para transformar o comportamento de outras pessoas ou modificar um objeto de interesse social. Desta forma, para Vygotsky, o conhecimento e o comportamento é transmitido e transformado culturalmente a partir de ferramentas e objetos, ou seja, pela via material. 

Externalizacao vygotsky2

Outro exemplo interessante dado por Piaget e discutido por Vygotsky é a fala egocêntrica. Uma criança interagindo com seu pai, pega uma cadeira e arrasta até o pai, enquanto isso fala para si própria cada uma de suas ações: pegar a cadeira, empurrar, parar, subir em cima. Quando a criança narra seus atos, ela utiliza a linguagem verbal como ferramenta para organizar seu comportamento para fazer uma espécie de planejamento, coisa que ainda não sabe fazer internamente. Além disso, ela expõe seu pensamento ao pai, que pode corrigir o planejamento ou a própria pronúncia das palavras. Assim, o processo de externalização contribui tanto quanto o processo de internalização para aprender a ser humano.

Em consonância com o materialismo dialético de Marx, a psicologia histórico cultural de Vygotsky postula que o ser humano se desenvolve em sociedade a partir das interações que tem com seus pares. Porém, acrescenta ao materialismo dialético uma perspectiva cultural e semiótica que ainda não estava tão desenvolvida no marxismo.

Essa psicologia vai dar origem à Teoria Histórico Cultural da Atividade, que é uma explicação específica sobre como se desenvolve a consciência humana a partir da atividade. Essa teoria tem como fundamento os conceitos de ferramenta, signo e objeto, que permitem transformar sentimentos, emoções, informações, intenções e ideologias em comportamentos individuais ou coletivos. Diferente da Semiótica peirceana, a Teoria da Atividade considera a interação com o mundo como um processo de transformação e não só de interpretação. Essa centralidade da ferramenta, signo e objeto como potencialidade de transformação torna a Teoria da Atividade uma das mais promissoras para fundamentar o projeto de interação. Ela possui inúmeras aplicações, tais como o pensamento visual, o projeto de regras abstratas, a seleção de materiais para cocriação e muitas outras que descreverei em momento oportuno.

Nota de agradecimento: esse texto foi materializado a partir da transcrição de uma aula realizada por Jenifer Jang. Que ver mais textos como esse? Ajude a transcrever outras aulas.

Fred van Amstel ([email protected]), 06.08.2020

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