A história da experiência do usuário no Brasil

Após ouvir o último episódio do Itera Ideia sobre a possibilidade de uma bolha na área profissional de UX no Brasil, fiquei aturdido com a falta de noção histórica dos profissionais da atualidade. O podcast apresenta uma ótima discussão sobre profissionais júnior que se consideram senior, porém, assim como a maior parte das publicações sobre o assunto, não remete à história da profissão no contexto brasileiro. Quando há referências históricas, essas são quase sempre pessoas ou organizações de fora do Brasil.

Se é para a bolha estourar, que estoure. Porém, não posso permitir que se perca, junto com o termo, a história da profissão. Em 2013, já alertava que essa nomenclatura não ia durar. Desde 2015, passei a utilizar a tradução de UX como ExU para provocar os profissionais da área a pensarem o contexto histórico brasileiro. Meu amigo Horácio Soares fez até uma camiseta para discutir o assunto no Product Arena. Porém, apesar das reclamações destes "dinossauros", até agora não foi feito nenhum trabalho substancial de levantar a história da profissão no Brasil.

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Uma profissão que não tem consciência de sua própria história corre o risco de desaparecer entre uma troca de nomenclatura e outra. Felizmente, essa área de atuação profissional já mudou de nome diversas vezes no Brasil e continua existindo. Isso graças a uma série de pessoas que trabalharam arduamente para criar uma prática consistente e umas outras tantas que trabalharam para tornar essa prática conhecida e reconhecida na sociedade (e não só no mercado).

Essas pessoas não fizeram isso isoladamente. Desde o início da profissão, essas pessoas se juntaram em grupos, comunidades, times e eventos. Esses coletivos fizeram diversas ações que deveriam hoje ser reconhecidas como marcos históricos pela contribuição fundamental à profissão, porém, pela falta de consciência profissional, hoje encontram-se esquecidas. Profissionais que hoje reclamam da bolha não sabem o quanto foi difícil para convencer a sociedade e os empregadores de que essa profissão era importante.

Vou construir aqui um rascunho de uma história da experiência do usuário no Brasil à partir do que consigo me lembrar. Mencionarei diversas pessoas que conheci ao longo destes 20 anos praticando esta profissão. Sugiro que os colegas profissionais conversem com essas pessoas, estudem seu trabalho e construam históricos menos parciais do que o que irei prover aqui. Isso irá contribuir muito para aumentar a consciência histórica da profissão e também, quem sabe, ampliar seu futuro.

Pra começar, ExU no Brasil não surgiu no mercado. Embora o termo tenha sido cunhado por Donald Norman enquanto ele trabalhava na Apple no começo dos anos 1990, no Brasil o termo começou a ser utilizado na metade dos anos 2000. Isso não significa que não havia práticas voltadas à experiência do usuário antes disso. 

Os pioneiros de ExU no Brasil foram pesquisadores de Universidades que, por curiosidade ou orientação ética, começaram a criar grupos e laboratórios de pesquisa voltados a processos que priorizavam o usuário em projetos de produtos e sistemas já nos anos 1990. Conheço os trabalhos pioneiros de Maria Cecília Baranauskas (NIED - Unicamp), Clarisse Sieckenius de Souza (SERG - PUC-Rio), Walter Cybis (LabIUtil - UFSC), Luiz Ernesto Merkle (UTFPR), Anamaria de Moraes (LEUI - PUC-Rio) e Lúcia Filgueiras (InovaUSP). Esses acadêmicos organizaram e continuam organizando conferências acadêmicas como IHC e Usihc. Nas orientações e eventos, esses pesquisadores formaram outros pesquisadores, que espalharam o assunto em outras Universidades ao redor do Brasil. É provável que existam outros pesquisadores pioneiros que não tenha mencionado aqui por não conhecer.

Nos anos 2000, por conta da bolha da Internet, o assunto começa a aparecer amplamente no mercado. Dois livros foram bem importantes para mim: Projetando websites (2000) e Homepage: Usabilidade (2002), de Jakob Nielsen. Nesta época, eu estava começando minha carreira de web designer e a faculdade de Comunicação Social. Senti que neste campo podia juntar as duas coisas e decidi enveredar para a Usabilidade que, na época, era o nome desta profissão.

Nessa época também, descobri o Webinsider, um website editado por Vicente Tardin que reunia várias colunas escritas por profissionais de Internet. Além de assinar uma coluna no Webinsider, Michel Lent Schwartzman, que sempre foi entusiasta de comunidades online, lançou a lista de email WDUse em 2002 para os profissionais de Usabilidade discutirem o assunto. Destaco a participação da Livia Labate nessa lista. Ela sempre respondia a dúvida de quem aparecia.

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Livia, assim como outros profissionais desta área, foram impactados pelo lançamento de Information architecture for the world wide web (2002) de Peter Morville e Louis Rosenfeld, o famoso livro com a capa do urso polar. Esse livro nunca chegou a ser lançado no Brasil, mas foi muito influente. Os profissionais que antes se identificavam como especialistas em usabilidade começaram a se identificar como arquitetos da informação depois de ler esse livro, eu inclusive. Neste mesmo ano, um grupo de arquitetos da informação dos EUA fundaram o Asilomar Institute for Information Architecture (AIfIA), que mais tarde seria renomeado como Information Architecture Institute. Livia Labate, que havia se mudado para os EUA, abriu uma lista de email vinculada ao AifiA para discussão em português em 2003, a AifiA-pt. Essa lista foi super-importante para a área, pois conseguiu reunir praticamente todo mundo que trabalhava na área na época. Os membros da lista organizaram diversos encontros em bares de São Paulo e do Rio de Janeiro. Eu participei de alguns no Rio.

Nessa época, a formação mais comum dos profissionais que trabalhavam com experiência do usuário no Brasil era Comunicação Social e não Design. Os designers da época, se preocupavam mais com aspectos visuais da experiência e tinham certa resistência em incorporar princípios de usabilidade em seus projetos. A introdução do wireframe, que vi pela primeira vez numa palestra do Luli Radfahrer (USP) em 2003, separou a estrutura informacional da aparência visual da interface.

A disponibilização de ferramentas simples de usar para publicação de blogs provocou uma fragmentação nos portais como o Webinsider a partir de 2003. Todo mundo começou a ter um blog. Rene de Paula Jr, um dos articulistas do Webinsider fez algo diferente: começou a gravar posts em áudio, o que viria a ficar conhecido anos depois como Podcast. No mesmo ano que o Rene lançou o Roda e Avisa, eu lancei o Usabilidoido, inicialmente sem posts em áudio. 

Ainda em 2003, Bruce Tognazzini publicou um artigo em seu site pessoal provocando uma outra parte da comunidade profissional a se organizar e padronizar uma nomenclatura de cargo. Esse artigo disparou a fundação de uma outra associação, a Interaction Design Association, mais conhecida como IxDA. Diferente da AifiA, essa organização desenvolveu um programa de capítulos locais que foi bastante efetivo no Brasil.

Em 2005, foi o organizado pela professora Lúcia Filgueiras o primeiro evento público que colocou a profissão em evidência em São Paulo, o Dia Mundial da Usabilidade. Nesse evento, lembro da palestra dada por Bruno Rodrigues sobre webwriting e usabilidade. Em 2006, esse evento ocorreu também em Curitiba, organizado pela professora Adriana Betiol.

Todos os eventos nesta época tiveram casa cheia. Não havia muita informação disponível em português e as Universidades não tinham cursos específicos sobre o assunto. A primeira pós-graduação lato sensu sobre Design de Interação foi criada na PUC-Minas em 2006 por Caio Cesar, Marcos André Kutova e Daniel Alenquer. Essa pós formou uma geração de profissionais extremamente ativos em Belo Horizonte.

Em 2007, membros da AifiA-pt começaram a discutir a possibilidade de organizar um evento de maior fôlego, com palestras enviadas pela comunidade.  Guilhermo Reis e Carol Leslie assumiram a responsabilidade e organizaram o Encontro Brasileiro de Arquitetura da Informação, que teve palestras de vários profissionais ativos na comunidade brasileira, tais como Abel Reis, Mauro PinheiroLeda Spelta muitos outros. Na ocasião,  Leda mostrou um vídeo sobre acessibilidade que havia produzido junto com Horácio Soares, Bruno Torres e Marcos Antônio de Queiroz (MAQ). Esse vídeo foi muito impactante na época, pois mostrava o impacto da falta de acessibilidade na vida dos deficientes visuais. Na ocasião também Silvia Melo apresentou o Blog de AI, criado pelos funcionários da Agência Click que queriam compartilhar suas experiências sobre Arquitetura da Informação, dentre eles Fabrício Teixeira, que viria a transformar este blog no UX Collective alguns anos depois. Também conheci no evento o Eduardo Agni, que iria fundar anos depois a Mergo.

Ebai todos

Até aqui, a maior parte dos eventos, discussões e oportunidades de emprego estavam localizadas em Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Perguntei a Alexandre Kavinski se o mercado de Curitiba estava preparado para uma empresa especializada em usabilidade, tal como a Try, fundada por Maria Ercília Galvão em 2003, ou a consultoria da Mercedes Sanchez. Ele me disse que não. Fiquei um pouco frustrado com a resposta, mas concordei. Refletindo, cheguei à conclusão que era necessário formar pessoas na região. Lancei um chamado aqui no Usabilidoido para quem tivesse interesse em montar uma pós lato sensu em Curitiba. Responderam Érico Fileno, Rodrigo Scama, Leandro Henrique de Sousa, Renato da Costa e Gonçalo Ferraz. Juntos fundamos o Instituto Faber-Ludens e abrimos uma pós-graduação em parceria com as Faculdades San Martín no ano de 2008. Tivemos grande impacto local com essa pós e com a posterior atividade de consultoria do Instituto. Saíram de lá duas ferramentas importantes para disseminar e organizar o conhecimento da profissão: o UXCards e a Plataforma Corais.

Faber ludens

Enquanto nós formávamos a cena curitibana, os paulistas estavam a mil por hora. O capítulo da IxDA-SP, fundado por Amyris Fernandez e Fábio Palamedi organizou vários Café com Interação. Estes eventos serviram para preparar a cidade para sediar o primeiro Interaction South America em 2009, evento que contou com a participação de vários palestrantes de fora do Brasil. Em 2010, o ISA foi organizado em Curitiba por Érico Fileno. Hoje, este evento se chama Interaction Latin America

A vertente de Design de Serviços começou nessa época. Em 2009, dei uma palestra em Joinville sobre Design de Serviços (talvez a primeira do Brasil sobre o tema) e conheci Luis Alt, que havia acabado de voltar da Espanha. Comentei com ele que ele era a segunda pessoa que eu encontrava no Brasil que conhecia bem o que era Design de Serviços. A outra pessoa era o Tennyson Pinheiro. Logo depois, em 2010, os dois se encontraram e fundaram a LiveWork Brasil e escreveram o livro Design Thinking Brasil, uma reflexão importante sobre o que funcionava no nosso contexto.

Design Thinking, a propósito, foi melhor introduzido no Brasil por Juliana Proserpio e Ricardo Ruffo, da Design Echos. Eles tiveram a oportunidade de fazer um curso intensivo no Hasso-Plattner Institute e voltaram ao Brasil cheio de ideias. A Escola de Design Thinking da Design Echos formou milhares de pessoas em competências básicas de design thinking, design de serviços e business design. Nessa linha do Design Thinking, destaco também a atuação da MJV no cenário brasileiro.

De 2011 a 2015 eu fiquei longe da comunidade brasileira por conta do meu doutorado na Holanda, então não tenho como descrever bem os acontecimentos históricos da época. Só posso dizer que, quando voltei, só se fala no tal do ExU designer, enquanto que papéis e assuntos relacionados a Usabilidade e Arquitetura da Informação desapareceram do mapa. Consegui entender melhor esse cenário através do excelente podcast Movimento UX, produzido por Izabela de Fátima. Embora esteja focado na história de profissionais que se destacaram no mercado, esse podcast é a melhor fonte de informações sobre a história da experiência do usuário no Brasil que vi até agora. 

Eu não vou descrever o que aconteceu de 2015 até 2018 porque ainda é uma história muito recente. O que posso dizer é que não acho que ExU está se tornando uma bolha. Vejo mais uma consolidação da prática profissional, porém, o termo ExU está ficando cada vez mais caduco para descrever o que fazemos. Hoje, profissionais dessa área trabalham facilitando processos de cocriação, gerenciado produtos e criando estratégias. Eu continuo preferindo usar o termo design de interação ao invés de ExU para minha atuação, porém, reconheço que sou um dos poucos que ainda usa. Acredito que a profissão ainda tem muita história pela frente, porém, acredito fortemente que o ExU Designer irá desaparecer.

Atualização 1: O Podcast Itera Ideia gravou um episódio respondendo a essa provocação: Do UX ao ExU: Uma Odisseia no Brasil. O episódio traz também as visões de Caroline Leslie e Eduardo Agni sobre a história da profissão.

Atualização 2: A DEXConf organizou uma mesa de discussão sobre este assunto, mediada pela Melina Alves, com a presença de Horácio Soares, Guilhermo Reis e eu. A gravação está no podcast da conferência.

Fred van Amstel ([email protected]), 22.09.2018

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