O design e a política do dia a dia

A revista iDeia Design número 08 traz uma entrevista comigo sobre minha pesquisa e ativismo para conscientizar a sociedade do papel político do design. É interessante que na mesma edição há uma entrevista com Donald Norman, autor do livro O design do dia a dia, um livro que trata os problemas do cotidiano como sendo apenas de usabilidade. Pra mim, os problemas de usabilidade são também políticos.

A entrevista pode ser vista no website da revista gratuitamente. Abaixo, reproduzo a entrevista realizada por Pâmilla Vilas Boas na íntegra e com links para aprofundamento.

Você foi um dos primeiros a abordar o design de interação no Brasil. Como a sua formação em jornalismo contribuiu para sua trajetória na discussão dos processos de design centrados no usuário? Como essa metodologia pode reformular os processos de design na atualidade?

Quando comecei a estudar jornalismo, a Internet estava despontando no Brasil e eu já tinha a intenção de trabalhar com ela. Eu acreditava que o meio digital tinha um potencial revolucionário para tornar a comunicação de massa obsoleta, então me pus a estudar as tecnologias da época: HTML, Flash, PHP.

A faculdade de Jornalismo, entretanto, mudou profundamente minha perspectiva, mostrando que as revoluções na comunicação não ocorrem por causa dos meios, mas por causa das pessoas. As revoluções são precedidas por um lento processo de mudança cultural que não se controla da mesma forma que um meio de comunicação. O meio em si não era tão revolucionário quanto eu pensava, mas pessoas sim.

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Chegada a essa conclusão, era preciso encontrar as pessoas revolucionárias. Foi então que eu conheci a tribo dos designers. Ao contrário dos meus colegas jornalistas, os designers não se detinham em criticar ou fiscalizar a sociedade. Eles faziam a mudança acontecer, mas num campo político completamente diferente: a política do dia-a-dia. Os produtos ditos sustentáveis projetados pelos designers não estão ali apenas para fazer bonito. A proposta é tornar as pessoas mais conscientes no seu dia-a-dia do impacto que tem o consumismo no meio ambiente.

Quando comecei a trabalhar com Internet de fato, eu aprendi muito com designers experientes seja através de conversas, livros e listas de discussão. Eles me ensinaram que o projeto de um meio precisava levar em consideração o dia-a-dia das pessoas que usariam esse meio. Obviamente que no jornalismo eu já tinha aprendido a pensar no leitor enquanto se escreve, mas o design me propunha um grau de aprofundamento muito maior.

Os designers trabalhando com Internet e outros meios digitais criaram esse nome "design de interação" para definir o que eles faziam. Criaram vários métodos específicos para lidar com os desafios do meio digital, porém, sem perder o foco no dia-a-dia característico. Métodos como teste de usabilidade, em que o usuário é convidado a testar o produto, ou sonda cultural, em que o usuário recebe uma amostra do produto pelo correio, acabaram por influenciar outras áreas do design.

Como você define o conceito de design expansivo? Como ele pode contribuir para o desenvolvimento humano?

Design expansivo é a tese que estou desenvolvendo no meu doutorado na Holanda e que diz respeito a projetos que contribuam para o desenvolvimento de qualquer atividade humana. Hoje em dia é cada vez maior o design que, intencional ou não, empobrece a atividade humana, chegando mesmo a torná-la desnecessária devido à automação.

Lonely Sculpture (2014) from Tully Arnot on Vimeo.

Não é preciso imaginar robôs futurísticos para sacar que o design pode empobrecer a atividade humana; as redes sociais, os celulares, os produtos de ostentação e os apartamentos minúsculos já estão aí para isso. O design expansivo consiste em criar espaços para que as atividades do dia-a-dia não sejam comprimidas, aceleradas, fatiadas e embaladas em pacotes.

Se as pessoas hoje estão cansadas da rotineira falta de espaço para suas atividades e os designers estão dispostos a fazer algo a respeito, então o design expansivo é uma tese relevante. Slow food, intervenções urbanas e produtos afetivos são exemplos atuais do que eu chamaria de design expansivo. A questão que eu ponho aos designers e interessados em minha tese é: que outros tipos de design podemos criar se focalizarmos no desenvolvimento da atividade humana?

Como o design emocional vem rompendo com a  linha funcionalista do Design, muito influente no Brasil, que ainda acredita que a forma de um objeto segue a sua função?

O funcionalismo se propõe a colocar a função dentro do produto, como se fosse parte da forma, daí o dito "a forma segue a função". Essa abordagem cai por terra quando o usuário encontra uma outra função para o produto que não aquela pensada pelo designer. A gente faz isso o tempo todo no nosso dia-a-dia e nem nota. A função da cadeira não é subir em cima para alcançar algo no topo do armário, nem tampouco é função do armário guardar coisas no seu topo. A cadeira é projetada para sentar e o armário para guardar objetos dentro.

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Apesar da gente concordar que as funções "originais" são melhores, continuamos a subir na cadeira e guardar coisas no topo do armário. Isso porque não agimos racionalmente o tempo todo. O dia-a-dia, em especial, é o espaço que encontramos para nos aliviar da exigência de racionalidade dos estudos, do trabalho, da economia e da política.

O design emocional explora essas "outras racionalidades" do ser humano, deixando de lado a paridade entre forma e função. O resultado do design emocional, o produto afetivo, não tem uma função aparente, explicada pela forma. A forma sequer remete a um símbolo, a uma outra coisa. O produto afetivo seduz o usuário pelo material, pela cor, pelo cheiro, pela interação, enfim, pela experiência sensorial imediata que proporciona. Pode não ter função alguma, mas a gente quer usar. Isso pode parecer irracional num primeiro momento, mas considerando o contexto de empobrecimento da atividade humana que mencionei anteriormente, o produto afetivo pode ser a esperança de começar uma nova atividade.

Como o design livre pode contribuir para uma sociedade mais criativa?

Design livre tem a ver com meu lado ativista. Hoje em dia, sabemos muito pouco da origem dos produtos que estão ao nosso redor; por exemplo: como eles foram projetados, que materiais foram utilizados, qual foi o impacto social e ambiental da fabricação. Se estas informações estiverem livres para os usuários, eles podem não só tomar melhores decisões de compra, como também continuar o próprio projeto do produto através de customizações e gambiarras.

A longo prazo, o design livre levaria a uma conscientização maior do papel do design na sociedade, principalmente, do potencial que oferece para que as pessoas desenvolvam seu potencial criativo no dia-a-dia. Ao invés de usar passivamente um produto do jeito que ele foi projetado pra ser usado, no design livre o usuário usa de uma forma diferente, muito mais criativa do que a original.
Diversas iniciativas atuais estão criando as condições para libertar esse potencial criativo do usuário: wiki do produto, código-fonte aberto, impressoras 3D, laboratórios de colaboração, etc. As consequências dessas práticas em larga escala não podem ser antecipadas, mas acredito que serão positivas.

Com o Design de Interação é possível criar experiências de interação não só na Web. Como ele pode ser incorporado em outros ramos do design e em outras áreas do conhecimento?

Na minha perspectiva, design de interação diz respeito à maneira como as pessoas podem interagir socialmente por meio de tecnologias. A maior parte dos especialistas nessa área trabalha com produtos de informação, tais como websites e aplicativos, porém, conheço alguns profissionais experimentando essa abordagem com eletrodomésticos, brinquedos e até mesmo ambientes.

No meu doutorado estou trazendo minha experiência no design de interação para a arquitetura e o resultado tem sido bem interessante. Pensar um prédio como um espaço de interação abre caminhos para a arquitetura contribuir para o desenvolvimento de atividades humanas, não só no quesito estético, mas também no quesito usabilidade.

Como foi o processo de escrever um livro colaborativo sobre design livre?

No Instituto Faber-Ludens a gente conversava muito sobre design livre, porém, nunca tínhamos tempo de escrever sobre. Então, decidimos reservar uma semana das férias de janeiro de 2012 para se "trancar no escritório" e escrever um livro em tempo recorde: uma semana. Como nem todos os colaboradores poderiam estar presentes, utilizamos também o espaço virtual da Plataforma Corais, que incluia videoconferência e edição de um texto por vários usuários ao mesmo tempo.

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Foi uma experiência muito intensa e gratificante. Pudemos juntos avançar as discussões rapidamente, formando uma proposta mais ou menos concreta do que poderia ser feito a respeito do design livre em nossa sociedade. O livro foi traduzido ao espanhol pela rede Maniobras Colectivas em El Salvador utilizando a mesma metodologia de escrita colaborativa intensa.

O Open Design rompe com algumas ideias fortes no design como a questão da autoria. Como essa proposta pode ser absorvida pelos designers e pelo mercado?

Embora exista um culto gigantesco à autoria no design, nem todos os designers estão em busca de fama. Para a maioria dos designers, na verdade, a motivação principal para trabalhar com design é colocar boas ideas no mundo. O problema é que muitas das ideias acabam guardadas numa gaveta só porque o designer não teve recursos para registrar a ideia, não encontrou um investidor ou não conseguiu terminar o projeto.

Disponibilizar a ideia num repositório de código aberto público abre a possibilidade para algum interessado continuar o projeto. Pode ser que este interessado roube a ideia sem dar créditos, mas pelo menos a ideia foi colocada no mundo. Isso não será justo se alguém ganhar dinheiro com o roubo da ideia, porém, fará todo sentido se o produto for usado para fins não lucrativos, ou seja, suprir demandas sociais não exploradas pelo comércio.

Por que o open design pode ser considerado uma proposta política?

Como disse anteriormente, todo design é uma proposta política, porém, é da política do dia-a-dia que estou falando. Disponibilizar o código-fonte do produto é uma opção que o designer tem de promover a criatividade no dia-a-dia, superando o consumo passivo. O código-fonte aberto torna o produto um bem público, podendo ser utilizado para aprender uma determinada técnica ou para criar novos produtos.

O problema é que no design, o código-fonte não é suficiente para que isso aconteça. Os desenhos em 2D ou 3D de um produto não contam toda a história. Para continuar um projeto, é preciso ter acesso às decisões que levaram àquele desenho. Por isso que eu prefiro usar o termo design livre ao invés de open design: é preciso mais do que diponibilizar códigos-fonte abertos, é preciso projetar em público e documentar o processo. Isso sim é uma proposta política revolucionária!

Imagine se os estádios da copa do mundo tivessem sido projetados assim? As chances de corrupção seriam muito menores, pois haveriam milhões de fiscais observando o projeto.

Fred van Amstel ([email protected]), 04.08.2014

Veja os coment?rios neste endere?o:
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