Gêneros Interativos e Alfabetização Digital

Esse artigo é fruto de reflexões iniciais relacionadas com minha pesquisa de Doutorado. Por muitos anos, me preocupei como profissionais especializados poderiam propor novas formas de interação para a sociedade através da tecnologia. Agora, quero ir além. Quero pensar como as pessoas em geral aprendem a interagir com novas tecnologias e como elas mesmas criam novas formas de interação entre si.

O que as oprime e o que as liberta? Embora muitos outros pesquisadores já tenham abordado esse tema, quero trazer uma perspectiva diferente que desenvolvi na minha experiência com o Design de Interação.

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Uma barreira de acesso pouco comentada sobre o uso de novas tecnologias é a Cultural. Toda tecnologia é criada em uma determinada cultura e a partir de seus valores e condições de produção. Quando a tecnologia é importada ou implantada numa outra cultura, seus valores podem entrar em conflito com os valores e as condições de uso desta outra cultura. Também pode acontecer o inverso, ou seja, a tecnologia não ter nenhum efeito transformador da realidade social. Isso é comum quando os signos tecnológicos não têm relação com a cultura local, ou em outras palavras, quando eles não fazem sentido naquele contexto.

A estratégia, em casos como esse, costuma ser o compensar do nonsense com a educação, forçando a construção do sentido. Tais esforços, por mais que bem intencionados, terão efeitos pífio ou reverso. É bem possível que, os usos encontrados para tais tecnologias, após o "treinamento tecnológico", sejam outros, potencialmente inúteis ou subversivos aos olhos dos educadores. Os educadores são membros de outra cultura que tentam, através da tecnologia, implantar seus próprios valores, acreditando que fazem um bem àquela população que carece de tal tecnologia para sua evolução.

São raras as estratégias de educação tecnológica menos etnocêntricas. A proposta de Paulo Freire é um bom exemplo, embora não focalize em educação tecnológica. Freire recomendava que o aprendizado fosse constituído a partir dos signos que o educando já dominava. Ao invés de trabalhar com temas estrangeiros, trabalhar com temas locais como, por exemplo, atividades e objetos do cotidiano. Um educador trabalhando com crianças numa favela violenta deve deixar de lado "vovô viu a uva" e trabalhar o tema violência em suas aulas.

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Isso é o que Freire chama de Tema Gerador. A partir de um tema de relevância social são desenvolvidas diversas dinâmicas de aprendizado em grupo, onde cada educando compartilha com os demais o que já sabe sobre o tema. Isso demonstra que, embora uma pessoa do grupo possa não saber muito sobre o assunto, o grupo como um todo o conhece bem. Fortalecendo a identidade local e valorizando o conhecimento do cotidiano, Freire conseguiu superar o abismo entre a educação formal e a vida em comunidades carentes no Brasil.

As interfaces computacionais costumam empregar estratégia semelhante à de Freire, porém, sem a característica de localização. Os signos que permitem a manipulação de dados nos computadores são metáforas baseadas em objetos de escritório: pastas, lupas, lixeiras, disquetes, etc. Embora sejam considerados universais agora que alcançaram dispersão global, estes objetos são originários de uma cultura material específica.

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O ícone de pasta para guardar documentos só tem esse mesmo sentido para indivíduos que conhecem esta cultura material. Uma cultura oral, em que o som está ligado à memória mais do que o papel, o ícone de pasta não tem o mesmo sentido. Tal disparidade não impede o uso, pois existem uma série de outras signos na interface que corroboram a metáfora da pasta. Embora nunca tenha estado num escritório, visto ou usado uma pasta de verdade, o usuário pode usá-la com o fim proposto através de sua própria significação. A construção do sentido se dá pelas próprias referências internas da interface que, dependendo da complexidade, pode ser considerada uma linguagem.

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O sistema operacional Windows, por exemplo, oferece ícones para abrir programas, menus para selecionar opções e janelas para navegar por diferentes conteúdos ao mesmo tempo. Para usar o Windows, é preciso não só reconhecer os signos individuais na tela ("isto é uma janela"), mas principalmente, saber quais são suas capacidades, para que serve e como interagir. Apesar da referência a um objeto do cotidiano ? o nome "janela", tanto a aparência quanto o comportamento da janela metafórica são diferentes da referência, exigindo uma abstração grande do usuário. Aprender a usar uma interface de sistema operacional é um processo equivalente a aprender uma nova linguagem e, portanto, algumas pessoas usam o termo Alfabetização Digital.

A Alfabetização Digital é essencial para o agir na sociedade da informação, porém, no Brasil, tem sido tratada de forma superficial. Alfabetização Digital não diz respeito ao domínio de equipamentos e softwares digitais, mas de uma nova linguagem interativa, formada pelo hibridismo entre linguagem escrita, falada, gestual e visual. Embora o domínio da técnica seja pré-condição para o uso desta linguagem, a proficiência advém do reconhecimento e adequação aos gêneros pelos "falantes" (usuários). Um falante que domina ferramentas digitais e não sabe o que fazer com elas está numa situação similar a um leitor que consegue ler textos mas não interpretar, o chamado analfabeto funcional.

A interpretação é um processo complexo que requer referências. O texto em si já é uma referência ao seu próprio conteúdo; o texto fala sobre alguma outra coisa que não é o próprio texto, porém, esta referência é suficiente apenas para uma leitura literal. Para capturar o sentido de um texto, a principal referência que utilizamos é o gênero. Que tipo de texto é esse? Como devo lê-lo? O que devo fazer depois de ler?

Tomar um texto opinativo como informativo é um erro muito comum cometido por jovens ao navegar pelas páginas da Internet. Além de perceber os gêneros tradicionais textuais que fazem parte do universo digital, é preciso também perceber outros gêneros interativos. Como responder a uma mensagem numa rede social? Na sua página ou na página do emissor? Como tirar uma dúvida sobre um problema de economia doméstica num fórum de discussões? Como pesquisar nos buscadores? As interfaces parecem óbvias para quem já sabe a resposta, mas é importante notar que todo mundo já fez esta pergunta um dia.

A resposta, entretanto, nem sempre pode ser bem definida. Não é uma mera questão de onde está o botão, mas uma questão de comportamento social. A resposta "depende..." significa que é necessário lidar com uma complexidade maior do que "faça isso ou faça aquilo" para descobrir o que é apropriado em cada situação. Os gêneros interativos são baseados em sensibilidades essencialmente humanas, mesmo quando o contexto é completamente maquínico. O maquínico também pode ser considerado como um tipo de sensibilidade humana específica, porém, quando tomada em separado das demais sensibilidades, vira mercadoria. O sujeito compra a máquina pensando que vai adquirir as competências dos gêneros interativos instantaneamente, mas logo descobre que foi enganado. "Compre aqui seus 10.000 followers" se aproveita da inexperiência dos falantes com o gênero interativo que o Twitter adota.

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Espero que tenha ficado claro até aqui que noção de gênero que estou adotando aqui não é a de mera classificação de livros ou filmes em categorias como romance, policial, ficção científica. Martín-Barbero me ensinou a perceber os gêneros como estruturas metamórficas que se atualizam constantemente frente ao cenário político, tecnológico e econômico. É devido a essa característica adaptiva (e ao mesmo tempo adaptadora) dos gêneros, que eles conseguem perdurar na história coletiva. Martín-Barbero conta a história do melodrama, desde as rodas em torno da fogueira até a novela televisiva. E que forma toma o melodrama nas tecnologias digitais? Taí um gênero interativo pouco estudado até o momento. Eu não tenho conhecimento aprofundado sobre esse gênero pra afirmar isso, mas me parece que as narrativas compartilhadas e, principalmente, construídas no Orkut possuem um forte conteúdo melodramático.

Minha pesquisa de doutorado não seria suficiente para identificar os atuais gêneros interativos e nem será seu foco, mas ainda assim vejo esse estudo como passo essencial para fortalecer a Alfabetização Digital. Creio que os designers de interação, os especialistas a que vinha me dedicando e que são responsáveis pelas interfaces dessa linguagem digital, estão desenvolvendo sensibilidades aguçadas para os gêneros interativos, porém, com objetivos bastante restritos. Estão preocupados apenas com os gêneros interativos relacionados a cada projeto em que participam. Não conseguem perceber que a cada interface que projetam, estão atualizando uma linguagem, estão participando também de um projeto coletivo. Seu papel na Alfabetização Digital é essencial.

Veja, por exemplo, o trabalho dos alunos do Instituto Faber-Ludens para identificar as interações mais importantes para um idoso ao usar o computador. Três projetos propuseram atualizações nos gêneros interativos para torná-los mais fáceis de aprender: Gevo (figura abaixo), nOnO e Dirce O.S. Será que tais modificações conseguem mesmo aproximar os gêneros interativos da realidade dos idosos?

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Faço o convite então aos educadores aqui presentes a conhecerem mais sobre Design de Interação e aos designers, a se preocuparem mais com Educação. Quem sabe surge daí um novo gênero interativo de design-educação para a Alfabetização Digital?

Fred van Amstel ([email protected]), 20.05.2011

Veja os coment?rios neste endere?o:
http://www.usabilidoido.com.br/generos_interativos_e_alfabetizacao_digital.html