Criação de qualidades da experiência do usuário

Avaliar as qualidades da experiência do usuário através de métricas é importante para tornar o conhecimento tácito do designer em conhecimento explícito, conhecimento que pode ser compartilhado na organização. Como gestores precisam cuidar de diferentes assuntos e possuem pouco tempo e atenção disponível, eles preferem se engajar com métricas do que com processos complexos. Com a métrica, o gestor orientado a números sente que está gerindo esse processo, mesmo que não entenda o que está acontecendo.

A métrica ajuda, portanto, a ganhar espaço político dentro de uma organização. Porém, uma vez conquistado esse espaço, o que fazer com ele? O grande desafio do design orientado a experiência do usuário não é avaliar qualidades conhecidas, mas sim criar qualidades únicas. Criar qualidades é muito mais difícil do que avaliar, pois não há como ter controle sobre esse processo.

Mesmo que uma organização copie todas as condições oferecidas por um concorrente, não há garantia alguma de que a experiência do usuário será igual. Na verdade, é mais provável que a experiência copiada seja considerada inferior à do concorrente, devido à ausência de originalidade e diferenciação. Experiências marcantes são aquelas que o usuário experimenta algo diferente e singular, fazendo-o sentir que está no lugar certo, na hora certa.

Dilbert easy to use

Uma abordagem comum e ingênua é incluir a qualidade da experiência nos requisitos ou objetivos do projeto. A tirinha famosa de Dilbert deixa claro que não adianta acrescentar uma qualidade quando a própria estratégia do produto já impede a emergência desta qualidade. A facilidade de uso, assim como todas as qualidades da experiência do usuário, não é algo que pode ser acrescentado ao objeto, mas sim à relação entre sujeito e objeto. Como essa relação é definida por uma experiência e essa experiência é emergente, não há como controlar a qualidade da experiência do usuário tal como se controla a produção de equipamentos técnicos.

A Apple é uma empresa reconhecida pelo controle da qualidade de seus produtos. Seus produtos são mais duráveis e apresentam menos defeitos do que os concorrentes, embora essa qualidade esteja diminuindo nos últimos anos. Porém, não é essa a qualidade que motiva as pessoas a acamparem na frente da loja quando eles lançam um novo produto. O que motiva a legião de fãs da Apple é a expectativa de uma experiência do usuário única.

Como a Apple cria essas qualidades? Esse é um segredo bem guardado, porém, a Apple publicou há alguns anos um vídeo mostrando como é a rotina do seu ateliê de projetos. No vídeo, o vice-presidente de design Jonathan Ive explica que nesse ateliê de projetos, os designers geram muitas ideias e produzem muitos protótipos. Na imagem é possível ver que para cada modelo, há uma série de alternativas e variações e que a equipe está constantemente discutindo esses modelos. Ive diz que design não deve ser tratado como algo separado do fazer. Pelas imagens fica claro que se trata de um fazer junto, um trabalho manual colaborativo.

O fazer é importante para criar qualidades porque é muito mais difícil imaginar uma experiência e perceber suas qualidades do que ter a experiência diretamente com um protótipo. O caráter social desse fazer também é importante, porque uma pessoa pode perceber uma qualidade que a outra não consegue perceber. Além disso, a percepção de qualidades é uma habilidade que se desenvolve pelo convívio com pessoas que também percebem essas qualidades. É um tipo de conhecimento tácito que se desenvolve pelo trabalho colaborativo. Por isso, Ive ressalta que sua equipe trabalha junta há 20 anos.

Além desse aspecto material do processo de criação da Apple, existe também, do lado do usuário, uma expectativa nutrida pelo branding da empresa. A assinatura Designed by Apple in California se estende à experiência do usuário, tornando a pessoa predisposta a valorizar e até mesmo procurar detalhes do projeto que proporcionam qualidades únicas da experiência. A reversibilidade de qualquer ação em interfaces é um detalhe que dá bastante trabalho para a equipe de desenvolvimento da Apple, mas que transmite uma sensação de segurança ao usuário de que seus dados não serão perdidos.

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Apesar de todo esse esforço da Apple em criar qualidades únicas para a experiência do usuário, ainda assim muitos usuários se frustram com suas experiências e rejeitam seus produtos. O Homepod é um exemplo. Isso acontece porque a experiência do usuário é individual e cada pessoa experimenta o produto do seu jeito. Se a Apple, com todo seu poder de branding, não consegue controlar a experiência do usuário, que dirá de uma empresa com expectativas baixas em relação à qualidade da experiência do usuário? Muitas empresas nessa situação começam a investir em experiência do usuário como se ela fosse um ativo negligenciado que a empresa gostaria agora de controlar melhor. Os resultados costumam ser catastróficos.

Quem tentou controlar experiências na história da humanidade falhou miseravelmente e ainda foi considerado antiético. Um caso extremo de falta de ética é o MKUltra, um projeto desenvolvido entre os anos 50 e 70 pela agência de inteligência dos Estados Unidos. Pesquisadores da CIA queriam saber se era possível controlar a mente de seres humanos e induzi-los a certos comportamentos. Por exemplo, seguir ordens sem questionar, manter segredos em condições de tortura, perder uma memória específica, etc. Foram utilizadas drogas psicotrópicas, treinamentos cognitivos, torturas psicológicas e técnicas de privação sensorial com participantes recrutados através de misteriosos anúncios de jornal. Após denúncias de participantes dos experimentos, o projeto foi investigado e descontinuado pelo governo americano em 1973. A CIA afirmou que os experimentos não foram conclusivos e, portanto, não foram utilizados. Alguns participantes, entretanto, brigaram na justiça para obter compensação pelos danos psicológicos causados pelos experimentos.

Um caso similar contemporâneo é o experimento conduzido pela rede social Facebook em 2012. Pesquisadores associados a empresa filtraram algumas palavras da timeline de 689.000 usuários para ver como eles reagiam emocionalmente. Usuários que tinham palavras associadas a emoções positivas eliminadas de sua timeline acabavam postando mais palavras associadas a emoções negativas do que positivas. O inverso também era verdadeiro. Os pesquisadores concluíram que a rede social promovia um certo tipo de contágio emocional entre os usuários. O experimento foi largamente criticado pelo público por manipular emoções sem pedir consentimento aos participantes. A empresa pediu desculpas, porém, não se comprometeu a parar com os experimentos. Muitas pessoas acreditam que o Facebook continua a realizar experimentos massivos como esse até hoje.

Cartoon facebook data science experiment

A realização de experimentos com usuários sem consentimento é uma prática comum no mercado de tecnologia. Lojas de comércio eletrônico costumam realizar dezenas de experimentos por ano, através do método Teste A/B. O objetivo mais comum é aumentar a taxa de conversão de usuários em clientes, porém, Testes A/B podem ser utilizados para influenciar a experiência de outras maneiras. O problema do Teste A/B para o projeto da experiência é que ele só consegue incidir sobre uma parte da experiência de cada vez. Como as experiências são percebidas como um todo pelo usuário e uma mudança em uma parte pode afetar a percepção de outra parte, é muito difícil criar qualidades da experiência do usuário com esse método. É quase como um tiro no escuro. Uma taxa de conversão maior não implica necessariamente em uma experiência melhor. O usuário que comprou um item por impulso pode se arrepender e ter uma experiência muito ruim para cancelar, devolver ou trocar seu produto.

A premissa que sustenta a tentativa de criar qualidades através de experimentos é a equalização entre design e controle. Essa premissa não poderia estar mais equivocada. O pensamento projetual se diferencia do pensamento gerencial justamente por dispensar o controle e abraçar a incerteza. Ou seja, projetar não é o mesmo que controlar; projetar é dar sentido. No caso de experiências, projetar é dar sentido a tudo aquilo que o usuário vê, sente, ouve e interage. Isso implica em relacionar as partes com o todo através de traduções, analogias ou transições. A rede semântica criada pelo designer serve como contexto para o texto do usuário, ou seja, para a produção de sentido implicada na própria experiência. Assim como o designer, o usuário também dá sentido às coisas, inclusive e principalmente, dá sentido sobre o sentido dado pelo designer. Isso significa que o usuário percebe as intenções expressas pelo projeto, por exemplo, através da propiciação sugerida e do emprego de padrões reconhecíveis.

Uma experiência faz sentido quando o usuário consegue relacionar o que está experimentando com experiências anteriores. As qualidades da experiência estão, portanto, ligadas ao processo subjetivo de interpretação do usuário. Criar qualidades significa engajar-se com esse processo sem ter a certeza do controle. Uma ação mais coerente com o projeto da experiência do usuário é a articulação. Articular qualidades significa estar constantemente criando relações, verificando se elas fazem sentido e modificando as relações de acordo com o observado. Por isso, a melhor maneira de criar qualidades é através de um processo de design iterativo em que o designer experimente diversas experiências.

Fred van Amstel ([email protected]), 28.01.2019

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