A necessidade é a mãe da invenção

Quando se começa um bom projeto interativo, a primeira coisa a se definir é o seu objetivo. Às vezes o objetivo se desmembra em sub-objetivos, mas um deles deve prevalecer. Em geral, esse objetivo principal surge para suprir uma necessidade da empresa que solicitou o projeto e não necessariamente para suprir uma necessidade do usuário.

Por exemplo, o objetivo "aumentar a fidelização dos clientes" quase sempre surge da necessidade da empresa de manter os clientes atuais e não da necessidade dos próprios clientes de desenvolverem um relacionamento contínuo com ela. Nas raras vezes em que os clientes tem essa demanda, as empresas mais atrasadas simplesmente tomam como garantida sua fidelidade e não julgam necessário investir em relacionamento com o cliente. Pior do que isso é quando o cliente não quer de jeito nenhum se tornar fiel; ele não tem essa necessidade. Desperdício de esforço.

Esses dias vi um outdoor na rua com o Edson Celulari anunciando o Clube de Vantagens da Copenhagem, rede de lojas famosa pelo seu chocolate fino. Assim como a esmagadora maioria das pessoas que passa por aquela rua, não tenho necessidade alguma de me tornar fiel a uma loja que vende ovos de páscoa a partir de R$50. Não vou dizer que o programa de fidelidade é falho, mas certamente aquela não era a melhor mídia para anunciar tal serviço, sinal de fraqueza n° 25.

Minha sugestão para evitar o desperdício é assentar os objetivos de projeto nas necessidades dos clientes. O objetivo da empresa deve ser a priori suprir tais necessidades. Lucro e outras vantagens devem ser consequência disso, não objetivos. Só isso já demanda que a empresa invista mais em relacionamento com clientes, pois vai precisar estar constantemente fazendo pesquisas ou criando canais de contato efetivos para detectar com precisão as necessidades do público.

Essa mudança de posicionamento não passará de engodo se a empresa assumir que já conhece todas as necessidades de seus clientes antes mesmo de ouví-los. Os objetivos mudarão de enunciado, mas a motivação será a mesma: primeiro a empresa, depois o cliente.

O capitalismo passa por uma transformação em que essa relação está se invertendo, pelo menos às vistas dos clientes. Eles esperam que uma empresa moderna esteja acompanhando tal mudança. Quando percebem que isso não acontece, a imagem da empresa parece antiquada.

Paradoxal é que muitos dos desenvolvedores de produtos interativos que conheço também estão antiquados nesse quesito, mesmo lidando diariamente com tecnologia de ponta. Eles podem até dispor dos meios para estabelecer esse relacionamento com o cliente, mas não sabem com usá-los da melhor forma. Quantas vezes já ouvi frases como essa: "é legal oferecer um serviço de qualidade, mas antes de tudo, precisamos obter lucro!"

Porém, a transformação não ocorre da noite para o dia. Adaptar-se a essa nova realidade, requer revisar conceitos muito bem arraigados em nossa própria formação profissional. Para evoluir, é preciso compreender porque se está mudando, do contrário, não há verdadeira evolução.

Se adoto aquilo que prego, esse artigo deve ultrapassar meu ponto de vista e explicar também como fazer o que estou pregando. Não fiz pesquisas rigorosas com leitores, mas pelas discussões que acompanho em listas de email e sites especializados, essa deve ser a necessidade do leitor neste momento.

No meu blog já dei vários exemplos de como é fácil fazer pesquisas para descobrir as expectativas de um determinado grupo de usuários. É possível usar questionários online, entrevistas qualitativas e quantitativas, análise de logs de busca, perfil semiótico e muitos outros métodos.

Deve-se tomar cuidado de focar em necessidades o mais específicas possíveis, para que seja possível resolver o problema. Todo mundo tem a necessidade de uma vida melhor, mas se já é difícil fazer algo para melhorar sua própria vida, que dirá a de uma outra pessoa.

Tomemos com exemplo a necessidade de maior segurança no ecommerce. Quem já fez pesquisas com usuários sabe que esse é um dos maiores empecilhos para o seu crescimento. Porém, esse enunciado não está claro; de que tipo de segurança se está falando: real ou percebida? Sim, porque você pode ter um sistema realmente seguro em que os usuários não se sentem seguros. Na realidade, os sistemas de empresas respeitáveis em ecommerce hoje são de fato seguros, mas creio que eles ainda não conseguem transmitir a segurança que os usuários desejam.

Em reação às notícias sensacionalistas que a mídia adora divulgar sobre hackers que invadiram um grande sistema aqui e acolá, as empresas estão investindo mais na segurança real e deixando de lado a segurança percebida. É uma balança: ou se pende para um lado, ou para o outro.

Para ter aplicações seguras de verdade, precisamos exigir que o usuário guarde senhas, use softwares atualizados, use o mouse para digitar dados ao invés do teclado e outras medidas de segurança que, muitas vezes, não fazem sentido para o usuário. Se ele não entender que é importante gastar o tempo extra com essas medidas, ele não se sentirá seguro por causa delas e, pior, pode ficar irritado com elas.

Por outro lado, se criamos um ambiente facilitado, que pula medidas cruciais de segurança em nome da economia de tempo, o sistema oferece menor segurança. Assim como a presença de vigilantes e uma boa iluminação aumentam a sensação de segurança de uma agência de banco, o design gráfico inteligente e uma redação familiar também podem fazer o usuário se sentir mais seguro. Uma campanha publicitária pode ser ainda mais eficaz. Porém, essas medidas estariam desviando investimentos da segurança real, tornando o sistema de fato menos seguro do que poderia ser...

Se uma coisa exclui a outra, então o que se pode fazer? Escolher um ponto de equilíbrio da balança, seja colocando mais peso de um lado ou de outro. O seguinte gráfico me ajuda a visualizar isso:

Essa é uma balança equilibrada, genérica, mas se pensarmos num exemplo específico, fica claro seu significado. Se tratássemos da necessidade de segurança de um ecommerce destinado a consumidores finais que possuem pouca experiência no uso do computador e não se sentem confortáveis com seu uso, possivelmente o gráfico ficaria assim:

Obviamente, para equilibrar a balança dessa necessidade (expressada pelo formato do triângulo), seria preciso colocar mais peso no lado do significado do que da utilidade. Investir mais em segurança percebida através de um design gráfico acolhedor, campanhas publicitárias, redação explicativa e etc. Nesse caso específico, o peso da usabilidade entraria no lado do significado, pois o usuário se sente mais seguro quando sente que consegue controlar a interface com facilidade.

Nesse outro caso, o peso da usabilidade entra do lado da utilidade:

Se alguém precisa voar no dia seguinte, deve estar com pressa, logo embora seja interessante descobrir qual a passagem que oferece o melhor custo-benefício (significado), é mais importante que a transação ocorra de forma rápida e fácil (utilidade).

Assim como todo modelo, a balança da necessidade (que, pelo nome, parece a prima pobre da porta da esperança) é uma simplificação em duas dimensões de uma escolha complexa que pode envolver fatores localizados em muito mais do que duas dimensões -- se formos lidar com fatores econômicos, sociais, políticos e culturais ao mesmo tempo. Ainda que imaginemos uma balança para cada dimensão, o modelo não dará conta da interdependência entre as diversas balanças que seria necessária.

Isso significa que ela não pode ser usada de forma prática, como integrada a uma metodologia de projeto. Apelando para a recursividade, a balança da necessidade tem mais peso do lado do significado do que da utilidade. Nada mais apropriado para o Webinsider, que divulga artigos que ao invés de dizer como se deve fazer, incentiva o leitor a pensar mais profundamente sobre as coisas, não é mesmo?

Originalmente publicado no Webinsider

Fred van Amstel ([email protected]), 05.08.2005

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http://www.usabilidoido.com.br/a_necessidade_e_a_mae_da_invencao.html