A ideologia do solucionismo tecnológico

Solucionismo tecnológico é uma ideologia identificada por Evgeny Morozov nos discursos que provém do Vale do Silício. Essa ideologia tenta fazer as pessoas acreditarem que é possível solucionar qualquer problema, seja de natureza social, econômica ou política, com uma boa dose de tecnologia.

Fome? Tecnologia agrícola. Pobreza? Tecnologia financeira. Crime? Tecnologia de vigilância. Depressão? Tecnologia química. Educação carente? Tecnologia educacional. Mudanças climáticas? Tecnologia limpa.

O solucionismo tecnológico sempre tem uma resposta rápida e genérica para qualquer tipo de problema: precisamos de mais tecnologia.

O Vale do Silício propaga essa ideologia porque ela cria oportunidades de negócios. Quando as pessoas acreditam que é possível solucionar um problema através de uma tecnologia, elas se tornam potenciais clientes ou investidores. Por sua vez, a tecnologia se torna um potencial produto ou serviço. Se por um lado, essa ideologia estimula o empreendedorismo e a atividade econômica, por outro lado, esconde os custos sociais e ambientais das tecnologias.

Para que uma tecnologia ofereça uma solução para um problema cotidiano, é preciso que a sociedade se organize de diferentes maneiras: é preciso um empreendedor, uma equipe que trabalha com ou para o empreendedor, um investidor que apóia o empreendedor, uma rede de clientes e fornecedores, um governo que regule o uso da tecnologia e muitas outras entidades sociais. Essas entidades se organizam através de diferentes processos, que transformam diversos objetos até que eles constituam o que é reconhecido como a solução.

Smartphone supply chain network

Ou seja, a tecnologia não surge do nada. Ela tem uma história passada e futura que vai muito além da solução prometida. Com frequência, os maiores impactos sociais e ambientais de uma tecnologia não estão no seu uso, mas na produção, na distribuição ou no descarte. Contraditoriamente, tais impactos podem ser considerados problemas piores do que aqueles que a tecnologia se propôs a resolver.

A produção de smartphones, por exemplo, gera impactos ambientais terríveis na produção, principalmente, para conseguir os minérios necessários para construir os componentes eletrônicos. Já a distribuição de smartphones leva as desigualdades sociais para a esfera digital, limitando o acesso a funcionalidades de acordo com a capacidade financeira do usuário. Os piores problemas estão, certamente, no descarte, que envolve a dispersão de uma série de componentes químicos tóxicos em lixões ou em oficinas precárias de reciclagem.

Todos esses problemas são criados pela sociedade para resolver o problema que o solucionismo tecnológico elencou como mais importante. Esse problema é tão importante, tão importante, que todos os demais podem ser desconsiderados. Os problemas importantes são os problemas do primeiro mundo, tal como a necessidade de evitar o tédio em momentos de espera. A ideologia do solucionismo tecnológico esconde que os problemas de primeiro mundo costumam ser resolvidos às custas da intensificação de problemas no terceiro mundo.

Não é a produção de smartphones que cria o trabalho dos mineradores semi-escravos do Congo ou dos operários suicidas na China. Essa produção simplesmente se aproveita da existência dos problemas sociais existentes em tais países para baixar os custos de produção, pois tais problemas não são importantes para a empresa nem para o usuário, que estão ambos iludidos pela mesma ideologia.

O usuário está tão iludido que não percebe que aceitar a solução de um problema seu significa também aceitar a criação de novos problemas em sua vida. Toda tecnologia vem com limitações, algumas inesperadas, outras planejadas. Limitações planejadas são problemas que estimulam o usuário a trocar a tecnologia por uma mais avançada. A incompatibilidade de uma tecnologia antiga com uma interação nova, por exemplo, é um problema clássico que a tecnologia cria.

A obsolescência programada se estende também a Leis, valores humanos, hábitos, comportamentos ou pessoas que se tornam incompatíveis com as novas tecnologias. Estes acabam, muitas vezes, se tornando, de uma condição de uso, a um novo problema a ser solucionado pela tecnologia.

Ipod obsolescence

Quando uma pessoa acredita que a tecnologia pode solucionar seus problemas, ela se coloca em uma posição de passividade. Não é a pessoa que resolve o problema, é a tecnologia. Mesmo que haja um imenso trabalho por parte do usuário para configurar a tecnologia para resolver aquele problema, o crédito vai todo para a tecnologia.

Apesar de aceitar o crédito pela solução do problema, o solucionismo não aceita a responsabilidade pelo ato. Se uma solução tecnológica causa algum mau inesperado, a culpa é do usuário, erro humano, afinal de contas, a tecnologia é perfeita e neutra.

Se fosse neutra, porém, a tecnologia não teria poder nenhum para resolver problemas. A tecnologia não faz nada sozinha porque ela nunca está sozinha. A produção, distribuição e descarte de tecnologia, já envolvem, por si mesmos, uma série de ações humanas que podem ser responsabilizadas. Dentre essas ações, destacam-se as ações de projeto da tecnologia, que é quando se define as intenções por trás da tecnologia.

Existem dezenas de métodos que ajudam a responder essas perguntas fundamentais, muitos deles criados no próprio Vale do Silício para apoiar a manutenção da ideologia solucionista. Podemos citar os métodos lean startup, jobs to be done, design centrado no ser humano, design thinking e design sprint, para ficar com exemplos contemporâneos. Todos esses métodos partem do pressuposto (ideológico) de que a tecnologia pode solucionar problemas de qualquer ordem.

Nem todo mundo repete essa ideologia sem pensar, entretanto. Aqui no Brasil, como estamos distantes do Vale do Silício o suficiente para desenvolver consciência crítica, costumamos nos posicionar de maneira ambígua em relação ao solucionismo. Por um lado, reconhecemos que a tecnologia não resolve problemas por conta própria, por outro lado, acreditamos que ela pode ser usada para resolver problemas de uma determinada categoria, por exemplo, os problemas de usabilidade. Por isso, enfatizamos que é preciso definir bem o problema para que este seja realmente um problema e, além disso, para que seja solucionável. O máximo que conseguimos, com isso, é tornar o solucionismo mais eficaz...

Embracing solutionism

Esse tipo de atitude não é suficiente para desconstruir o solucionismo e seus efeitos nefastos. Quem quer que queira ir contra essa ideologia, não basta responder às perguntas acima de maneira diferente, utilizando métodos alternativos como o estudo etnográfico ou o design participativo. É preciso, na verdade, inverter as perguntas fundamentais, a partir de uma outra ideologia.

Esse tipo de pergunta leva à uma abordagem completamente diferente do que está estabelecido hoje no mercado de tecnologia e na profissão de ExU. Chamo essa abordagem de design problematizador e irei abordá-la em posts futuros. Por ora, concluo com seu princípio primeiro: A tecnologia não soluciona nada. Quem soluciona são as pessoas. Porém, as pessoas também criam tantos problemas quanto solucionam.

Fred van Amstel ([email protected]), 12.01.2020

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