Crítica à gestalt da percepção visual

A percepção visual é um fenômeno difícil de explicar, pois é o ponto de contato, a interface, entre o mundo físico e o mundo mental. A biologia explica o processo até a estimulação da luz sobre os cones e bastonetes no fundo do olho, mas não pode dizer como essa estimulação leva a formação de imagens. Não há como extrair uma imagem das entranhas do cérebro, embora já se tenha tentado fazer isso. A imagem se forma na mente, que é uma abstração mantida pelo cérebro para o ser-vivo se adaptar melhor ao meio-ambiente em que vive.

A percepção é fundamental para a sobrevivência, pois é com base no conhecimento do meio-ambiente que a mente engendra seus planos de ação. Sendo assim, a percepção transforma os estímulos da luz em relações entre imagens e o meio-ambiente em que vive a pessoa.

A percepção pode provocar reações rápidas como no caso de estar escrevendo um texto num editor de texto e de repente ver uma tela toda azul. Não é a cor azul que lhe causa ansiedade, mas sim a ameaça de perder seu trabalho, pois esta tela é completamente diferente da que você estava anteriormente. A relação entre a imagem e o meio-ambiente indica perigo. Após algumas reincidências do caso, pode ser que sua percepção se acostume com o estímulo e transforme a ansiedade em raiva pelos autores do software ou num estranho prazer.

Camiseta com a tela azul

O resultado da percepção de um arranjo visual é, portanto, determinado pelas relações que a pessoa faz entre as imagens e seu contexto. Essas relações são únicas para cada pessoa e cada contexto, mas são balisadas nas experiências prévias da pessoa.

Certa vez, um pesquisador mostrou fotografias a uma tribo indígena que tinha tido pouco contato com nossa cultura ocidental e eles simplesmente não conseguiram entender que ali haviam objetos representados, pois sua percepção não estava treinada para converter a imagem bidimensional da foto numa cena tridimensional. Em nossa cultura, estamos tão acostumados a fazer isso que existe grande possibilidade de você ver primeiro um cubo na figura abaixo, embora o que esteja desenhado seja uma série de linhas.  

Hexágono que parece cubo

Essa figura é usada como exemplo para a lei de Prägnanz, que determina que a percepção de uma forma segue a melhor Gestalt possível. Melhor aqui é entendido como harmônico, regular, ordenado e simples. Se a lei está certa, as pessoas deveriam ver a forma mais simples primeiro — um hexágono, mas não é o que aconteceu quando expus a imagem em meu blog. Muitas pessoas comentaram que viram um cubo primeiro. Provavelmente um gestaltista ortodoxo diria que não repeti o experimento como no original, num laboratório, sem influências de contexto, e por isso não deu certo. Minhas explicações, o lugar em que estava publicado, as pessoas que leram, tudo isso interferiu no resultado do teste.

Entretanto, os próprios livros de gestalt fazem isso descaradamente. Ao apresentar a lei de fechamento, eles dizem para olhar para a figura abaixo e ver 4 pacmans:

Um retângulo escondido entre pacmans

Na verdade eles pedem para que você veja um retângulo branco no centro. Quem viu 4 pacmans pode entender o poder que tem a influência do contexto sobre a percepção. Quem não viu os pacmans, que veja nessa outra figura:

Tela do jogo Pacman

Se as leis só se confirmam dentro de um laboratório, que utilidade têm para um produto que inevitavelmente estará sujeito a todo tipo de influências de contexto quando for percebido, como é o caso da tela do jogo acima?

A verdade é que não existem leis universais da percepção.

Se as leis da percepção realmente existissem, como sustenta a Psicologia Gestalt, então a percepção seria controlável mediante o domínio das leis. Bastaria descobrir todas essas leis para montar um algoritmo que geraria layouts automaticamente a partir das reações perceptuais desejadas, dispensando a atuação de um designer humano. A maior contribuição do designer humano não é a aplicação de leis, mas sim a escolha dos estímulos mais interessantes para os diversos contextos de uso. Através desses estímulos, o designer pode até inaugurar novas formas de percepção.

Se os gestaltistas admitem que a percepção é influenciada pela experiência prévia, porque não seria a percepção também influenciada pelas novas experiências?

A gestalt dinâmica

Tais questionamentos não visam descartar a aplicação da Psicologia Gestalt no Design, mas sim atualizá-la. Se considerarmos a gestalt de um artefato como um todo em transformação, sua aplicação se torna interessante para entender melhor alguns aspectos do design de interação, por exemplo.

Enquanto o design gráfico trabalha com formas visuais e o design de produto com formas físicas, o design de interação trabalha com formas imateriais. Uma tela congelada de um software não pode representar sua totalidade, pois não estão representadas inúmeras qualidades que só se realizam no momento de uso. Só enquanto o software é usado é possível perceber a dimensão do tempo, que se manifesta de forma não-linear. À soma dessas qualidades, Jonas Löwgren dá o nome de gestalt dinâmica, ou seja, a percepção geral das interações, sensações e situações que são proporcionadas pelos artefatos interativos.

Acho que é aquele “gostinho” inexplicável que sinto logo que compro um novo gadget. No meu caso, enquanto a usabilidade vai bem, a percepção geral é muito favorável, mas quando tenho problemas, essa percepção é afetada. Outras pessoas menos “usabilidoidas” valorizam outras qualidades do produto, portanto, a gestalt dinâmica varia de pessoa para pessoa.

Creio que a proposta do Experience Design é justamente estudar essa gestalt dinâmica. Além do livro do Nathan Shedroff, vi pouca coisa discutindo a relação do todo com as partes. Em geral, vejo designers utilizando o termo como mero guarda-chuva para discutir uma parte do todo como a usabilidade, arquitetura da informação, design de interação, design gráfico, design emocional e etc. Deve ser porque, para complicar ou simplificar, o todo é maior que a soma das partes.

Fred van Amstel ([email protected]), 02.12.2006

Veja os coment?rios neste endere?o:
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